terça-feira, 3 de março de 2009

CRÔNICA


Maluco Beleza
Lembro-me que na minha cidade existia um louco, um mendigo que todos da cidade até hoje não sabem de onde viera nem pra onde iria, um homem sem registro, sem CPF, sem vida social.

Ele chegou à cidade há alguns anos trazendo consigo apenas sua enorme barba, que lembra os homens das cavernas de eras passadas, sua pele negra castigada pelas moléstias solares, as roupas do corpo e uma bagagem em trapos, com um paletó surrado, e garrafas com água. Provavelmente veio de um lugar distante.
Nestes últimos meses estive em minha velha cidade e enquanto voltava pra casa de uma reunião do partido, no carro escutava “Vida Louca Vida” na voz de Cazuza, quando avistei o referido louco deitado em baixo de uma árvore coberto com seu paletó e uma coberta suja e velha.
Pensei: coitado homem! Nada possui senão a vida miserável. Creio que até sua consciência já se foi há muito tempo. Vive no nada, pra nada, por nada, vive para ninguém. Não possui função na sociedade selvagem na qual vivemos. Pobre homem sem discernimento da vida, deve ser ele o homem mais triste do mundo, as pessoas passam ao seu lado e não dizem bom dia, boa tarde ou boa noite, nem mesmo os políticos da cidade lhe estende a mão num gesto simples de simpatia. Alimenta seu corpo através de migalhas doadas por moradores da cidade.
Vinha no carro e então reduzi a velocidade, baixei o vidro e o olhei com mais atenção, enquanto meu cérebro maquinava e projetava a vida daquele pobre homem nos subúrbios da minha mente.O olhei atentamente, e então nossos olhos se cruzaram.
Percebi que ele também me observava, e então eu por motivos desconhecidos me senti tímido, talvez por estar dirigindo um carro e vestindo minha camisa de mangas compridas que foi presente de um amigo advogado, enquanto ele nada tinha.
Senti que eu era um homem injusto, não sei o porquê, só sei que assim foi que me senti. Enquanto nos olhávamos nos olhos ele sorriu. Então aquele sorriso espontâneo e perdido naquela boca sem dentes destruiu a projeção que tomava conta do imaginário da minha mente.
Ele não era um homem triste, ele não era! Não o dono daquele sorriso e daquela mão levantada com uma felicidade intransigente, ele poderia não possuir memória ou consciência, mas tinha em seu coração algo grande. Aquele homem vive em um mundo que eu não conheço, em um mundo onde nenhum de nós daquela cidade conhece.
Passado ele não possui, certamente suas feridas e desilusões amorosas não existam, sua feliz loucura dissipou as dores que ele possuía.Ele sim era feliz. Sem passado, sem se preocupar com o futuro e, vivendo o presente sem temores, sem valores, sem fatores sociais a seguir. Uma feliz loucura era aquela.Não sinto inveja daquele homem.
Não sinto admiração, mas compreendi o que ele é: um louco feliz, um “maluco beleza”, como diria o cantor e compositor Raul Seixas. Então o carro voltou a correr pela avenida principal com a velocidade que tinha antes, deixei pra trás aquele pobre coitado. Um mendigo, um homem feliz.
A poeira do asfalto subiu, mas o sorriso interior daquele homem permaneceu e permanecerá até o dia em que ele caia no abismo do esquecimento que a morte nos joga. Porém comigo guardarei o sorriso sem dentes deste “maluco beleza”.

Modesto Cornélio Batista Neto
Escritor

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