"Roberto Gurgel - Natural de Fortaleza, o Procurador-geral da República diz porque espera a condenação dos réus do mensalão, fala de insegurança e se diz preocupado com as obras da Copa e Olimpíadas - Foto: Gabriel Gonçalves
O acusador oficial
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Há cerca de 41 anos Roberto Gurgel trocou Fortaleza pelo Rio de Janeiro, para onde já seguiu desenhando uma carreira jurídica para o futuro. Os pais continuam morando na capital cearense, os irmãos também, enquanto ele, agora residindo em Brasília e ocupando um dos cargos mais importantes do País, o deProcurador-geral da República, mantém os laços com a média de duas visitas anuais por iniciativa particulares e os contatos telefônicos quase diários.
De onde despacha no imponente prédio do Ministério Público Federal em Brasília, Roberto Gurgel comanda algumas das investigações mais importantes do País no momento. Tem a assinatura dele, por exemplo, a peça de acusação no processo envolvendo o, chamado, escândalo do mensalão, prestes a ser julgado no Supremo Tribunal Federal (STF). Gurgel é, ainda, um dos olhos mais vigilantes sobre as obras da Copa do Mundo e Olimpíadas e, inclusive, briga na justiça para evitar mudanças nas regras de licitação por temer desvios de recursos públicos.
Roberto Gurgel esteve em Fortaleza no último dia 16, para participar do Seminário de Altos Estudos sobre Administração Pública, e conversou com O POVO sobre temas como mensalão, obras da Copa, salários no Judiciário, relações com o governo e, além disso, falou muito de sua relação com o Ceará. A entrevista aconteceu na sede local do MPF e os momentos principais podem ser conferidos a seguir.
O POVO – O Brasil está mais corrupto, conforme é a percepção geral?
Roberto Gurgel – Eu acho que há, hoje, mais condições de serem descobertos episódios de corrupção. Há mais transparência; Até por uma pressão da sociedade, os atos do governo são mais transparentes do que eram há dez anos, por exemplo. E, claro, essa transparência maior facilita a apuração desses desvios de conduta, desses episódios de corrupção. Estou no Ministério Público há quase trinta anos e a minha percepção é de que, na verdade, a corrupção não aumentou, o que aumentou foi a apuração pelos órgãos de controle. Não apenas do Ministério Público, mas do Tribunal de Contas, da Controladoria Geral da União, os órgãos, em geral, se aperfeiçoaram e hoje têm condições de exercer uma fiscalização mais efetiva. Ainda não é a ideal, mas melhorou muito.
OP – E quando o Brasil é colocado, nessa questão, dentro de um plano mundial. A nossa situação é boa?
Gurgel – O Brasil já esteve num plano muito pior na esfera internacional, até hoje sua posição não é digamos, honrosa, mas já esteve bem pior, bem abaixo.
OP – O que tem acontecido de melhoria nesse campo o senhor considera que independe de governo? Aconteceria sob qualquer partido?
Gurgel – Não, não. É algo que tem acontecido independente de se estar no governo do PSDB, do PT, há um processo constante, digamos, de aprimoramento de uma fiscalização mais efetiva. Não me parece uma questão partidária. O que tem crescido é a pressão da sociedade brasileira no sentido de não tolerar mais esse tipo de situação e as coisas vêm caminhando, muito embora, claro, ainda exista uma longa trajetória a ser percorrida porque o ideal é que consigamos manter a corrupção em níveis bem inferiores ao que temos hoje no Brasil.
OP – O Brasil, que está para sediar os dois maiores eventos esportivos mundiais, a Copa e as Olimpíadas, apresenta um volume expressivo de obras públicas sendo tocadas ao mesmo tempo, agora. Quais as preocupações do senhor e do Ministério Público com este cenário, no sentido de ele ser aproveitado para desvios de recursos públicos? Há inclusive um debate sobre o estabelecimento de um Regime Diferenciado para Licitações...
Gurgel – É, o regime diferenciado..
OP – Em relação ao qual o Ministério Público se posiciona contra. Há uma preocupação de que esse volume de obras não venha a se transformar num problema?
Gurgel – Sim. As despesas públicas decorrentes, ou relacionadas, aos chamados megaeventos, especialmente a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, estão, hoje, entre os assuntos que merecem uma atenção prioritária do Ministério Público. Isso porque, não é novidade para ninguém, tais eventos se constituem, sempre, em oportunidades de grande malversação de recursos públicos. Há um exemplo bem recente, que foram os Jogos Panamericanos (do Rio de Janeiro, em 2006), nos quais excederam-se, em dezenas de vezes, a despesa inicialmente estimada. Nossa preocupação é, primeiro, com a demora na realização das obras e dos serviços necessários. Por quê? Porque também é já conhecido das nossas práticas administrativas que você retarda o início de uma obra, pelos mais diversos motivos, para daqui a pouco dizer que já não tem mais condições de realizar aquela obra a não ser que haja uma dispensa de licitação..
OP – E o evento não tem como adiar, claro.
Gurgel – Não tem, por isso, escancarando a porta para, digamos, empreendimentos e condutas com alta possibilidade de desvio de recursos públicos etc. Nesse cenário é que se insere, ao ver do Ministério Público, a questão do Regime Diferenciado. Eu ajuizei Ação Direta de Inconstitucionalidade por entender exatamente isso: que se está escancarando a porta para problemas muito graves em termos de lesão ao patrimônio público.
OP – Um dos argumentos que o governo federal utiliza é de que o TCU participou de toda a discussão sobre o Regime Diferenciado e, inclusive, apoia sua implantação. Não é algo a ser considerado?
Gurgel – Nós temos trabalhado nos temas dos megaeventos, da Copa, das Olimpíadas etc em parceria com TCU, com a própria CGU, mas não cuidados especificamente da questão do Regime Diferenciado. Temos trabalhado mais em termos de obter informações, fazer o acompanhamento dessas obras e serviços.
OP – O senhor tem convicção de que o Regime Diferenciado não é a melhor forma de agilizar as obras públicas relacionadas aos megaeventos?
Gurgel – O que não tenho dúvida é da inconstitucionalidade. A Constituição fixa parâmetros para realização das licitações e o Regime Diferenciado inviabiliza a observância deles, não tenho dúvida quanto a isso. E mais: há uma preocupação, muito embora nesse momento tenhamos o Regime aplicado à Copa do Mundo e aos Jogos Olímpicos, mas não é segredo, tem sido falado abertamente, que ele seria estendido, depois, e poderia inclusive se transformar em algo ordinário das licitações. Há coisas perigosíssimas nele! Em nome dessa agilidade, dessa aceleração dos processos, há coisas como a contratação integrada, na qual é licitada, ao mesmo tempo, o projeto básico, o projeto executivo e a própria execução das obras ou serviço. Quer dizer: como se vai contratar algo cujo projeto básico não está definido? Desde sempre a definição do projeto básico era absolutamente imprescindível para realização de uma licitação. Agora não, a licitação é feita englobando projeto básico, projeto executivo e execução. É um risco imenso de lesões ao patrimônio público.
OP – A lei das licitações no Brasil, de qualquer forma, é apontada como um problema em várias circunstâncias devido ao seu rigor. O senhor concorda? Também considera que há pontos nela que precisam ser modificados?
Gurgel – Acho que a Lei das Licitações poderia sim ser aprimorada, ser aperfeiçoada, pode haver alguma coisa nela que determine uma demora desnecessária, mas, no geral, ela é compatível com o tratamento constitucional que as licitações recebem no Brasil. No caso específico da Copa do Mundo não tenho dúvidas de que se as obras tivessem sido iniciadas, se os procedimentos...
OP – O senhor entende que o atraso alegado, os adiamentos, atendem a objetivos, em alguns casos?
Gurgel – Não diria que tenha sido, por enquanto, posto em prática deliberadamente, mas o cerro é que os procedimentos para essas contratações de obras e serviços já deveriam ter sido deflagrados há muito tempo. Há um ano atrás, no mínimo. O Ministério Público insiste, há mais de um ano, que a demora poderia levar a essa tentação de adotar regimes diferenciados ou regimes especiais que dificultam a realização de uma licitação de acordo com os parâmetros da Constituição.
OP – Do esporte à política, a Câmara vem de tomar uma decisão frustrante para sociedade, com a absolvição da deputada Jacqueline Roriz (PMDB-DF) num processo de cassação. O Ministério Público está acusando-a....
Gurgel – É, já fiz uma denúncia com relação ao mesmo episódio pelo qual ela foi julgada na Câmara.
OP – Quando a gente vem falando que o Brasil tem progredido no combate à corrupção, está melhor nesse campo, o que representa um episódio do tipo?
Gurgel – Não há dúvida, como eu disse, que o País tem avançado. No entanto, vez por outra, nós temos, diria que até regularmente, episódios que representam desestímulo nesse combate à corrupção. Em relação à deputada Jaqueline Roriz, eu disse, na oportunidade em que ofereci a denúncia ao Supremo Tribunal Federal, que as imagens falam por si mesmas. Na verdade, os vídeos mostram ela recebendo dinheiro, não restando qualquer dúvida quanto à sua conduta. O Congresso, no exercício de sua competência, era uma questão interna corpore, se apegou muito à questão de que os fatos seriam anteriores à assunção do mandato dela e que, por isso, não poderia ser responsabilizada no nível do Legislativo. Na verdade, se decidiu com base no aspecto técnico, é uma posição que não se pode dizer que tenha alguma razoabilidade, mas que passa para a sociedade uma sensação de impunidade. E sempre que a sociedade acha que a impunidade continua a existir, ou a preponderar, é muito ruim porque a participação dela nesse processo é essencial.
OP – O senhor não considera que é momento de discutir o papel de julgador do Congresso, por exemplo, quando está envolvendo um membro da própria casa?
Gurgel – Nós temos as diversas instâncias, na verdade. No caso mesmo da deputada Jaqueline Roriz há um inquérito com denúncia já oferecida, embora ainda não transformada em ação penal, e tenho certeza de que o Supremo Tribunal Federal receberá e nós teremos prosseguimento até à condenação dela, no final. Agora, sempre acho que deve haver o espaço para que o Legislativo, no âmbito de sua competência, faça esse tipo de julgamento. Infelizmente, o que acontece nesse tipo de julgamento é que se ele tivesse ocorrido no auge da divulgação do vídeo, da pressão da própria imprensa, acho que o resultado teria sido diferente. O que aconteceu foi que passou muito tempo e a própria mídia, digamos, diminuiu a pressão em torno do assunto e facilitou a deliberação da forma como ocorreu.
OP – E quanto à Ficha Limpa, o senhor espera que ela vigore para 2012, evidentemente.
Gurgel – Sim. Não há dúvida de que ainda existem alguns aspectos por serem examinados no âmbito do STF e que não se pode dizer que superamos todos os riscos existentes, mas o certo é que a grande ênfase das decisões anteriores sempre estiveram relacionados à não aplicação nas eleições de 2010. Para o Ministério Público, então, a expectativa é de que haverá a aplicação pena da Lei da Ficha Limpa nas eleições municipais de 2012.
OP – De qualquer maneira, já foi frustrante a não vigência da Ficha Limpa nas últimas eleições?
Gurgel – Já, porque defendíamos que ela já poderia ter sido aplicada naquela ocasião, e continuamos a entender assim, com todo o respeito à decisão do Supremo. Na verdade, o que há ainda pior são as tentativas de podar a lei, mutilar de tal forma, ai sim, mais do que uma frustração, teríamos um diploma legal dando a falsa sensação de moralidade. Se, repito, alguns dispositivos dela forem, também, declarados nulos.
OP – O que preocupa mais em relação a essas ameaças de “mutilação”?
Gurgel – Na verdade é o conjunto, há uma série de dispositivos. É que ela faz uma discrição de diversas hipóteses nas quais candidatos seriam inelegíveis e quando se pretende discutir hipótese “a” ou hipótese “b”, buscando retirá-la, a verdade é que quando se retira um ou outro ponto o sistema, como um todo, fica mutilado.
OP – O senhor deve ter informação de que o Ceará teve um Ministério Público muito atuante na aplicação da Ficha Limpa..
Gurgel – Muito, eu sei. Houve um combate nacional, diria, mas alguns estados se destacaram e o Ceará foi um deles sem dúvida.
OP – Outro tema importante que está na pauta do STF é o processo do mensalão, que se arrasta desde 2005. O senhor acredita que haverá punições no nível da expectativa da sociedade nesse caso?
Gurgel – Nossa expectativa é de que haverá condenações.
OP – A denúncia apresentada no STF é suficientemente contundente para levar a tal resultado?
Gurgel – É suficientemente forte, é consistente, nas alegações finais que fiz agora, depois de uma análise sobre todas as provas colhidas, fiquei absolutamente convencido de que há elementos mais do que suficientes para condenação daquelas pessoas denunciadas.
OP – O convencimento do senhor é de que existia um mensalão naquela forma denunciada, com pagamentos periódicos a parlamentares em troca de apoio político ao do governo? Esta era a sistemática?
Gurgel – Na verdade, desde o primeiro momento em que surge a questão do mensalão, o esforço das defesas tem sido sempre no sentido de desqualificar a acusação alegando que ali nós teríamos apenas uma questão de caixa 2 eleitoral. Caixa 2, a rigor, não é crime, é um ilícito eleitoral, digamos assim, e, portanto, não teríamos a existência de crime. Desde o início, ou seja, desde o momento do oferecimento da denúncia, ainda na gestão do meu antecessor (Antonio Fernando), e agora examinando todo o material colhido, estou absolutamente convencido, mais uma vez, de que existiu sim o mensalão concebido como um esquema de poder, como um projeto de poder que deveria se prolongar por muitos anos.
OP – Uma “novidade”, parece, é que o ex-deputado Roberto Jefferson, criador do termo mensalão, negar, em seu argumento de defesa ao STF, a existência do pagamento na forma como o senhor define. Ele também diz que o dinheiro para o PTB era apenas um caixa 2 eleitoral. Há algum peso específico nesse caso?
Gurgel - Não. Ele é um dos acusados e a tese do caixa 2, sem dúvida, é a mais favorável para os acusados. Veja bem: a questão é de tal gravidade que ninguém ousa afirmar sua inexistência, que não houvesse os pagamentos aos diversos partidos que formavam uma base de sustentação etc. Ninguém nega e, como ela não pode ser negada, joga-se para a questão do caixa 2 como tentativa de retirar o assunto da esfera criminal. As declarações do deputado Roberto Jefferson, então, se inserem nisso, é a maneira de um réu se defender das acusações.
OP – Um ponto polêmico do processo é a exclusão do ex-presidente Lula da lista de acusados, boa parte hoje transformada em réus. Como principal beneficiário do esquema que o senhor diz que era de manutenção do poder, ele não deveria estar na lista?
Gurgel – Na verdade, o doutor Antonio Fernando, que era o Procurador Geral da República à época, após um exame de meses dos elementos colhidos naquela fase do inquérito, chegou à conclusão de não havia nenhum elemento que autorizasse, mesmo que ele fosse o beneficiário, a responsabilização do presidente Lula. Até acrescento uma coisa: há quem coloque alguma dúvida se o presidente Lula seria, efetivamente, o único beneficiário ou se não haveria outras pessoas.
OP – O senhor é uma das vozes que tem defendido o reajuste dos servidores do Judiciário, o que obrigou o Executivo a rever sua proposta orçamentária para 2012. Ele é necessário, de fato?
Gurgel – Estamos falando, na verdade, de recomposição de perdas que, considerada a inflação de 2011, devem atingir um pouco mais de 21 por cento. Ou seja, é um quinto da remuneração de magistrados e membros do Ministério Público que já se esvaiu, digamos assim, em razão das perdas decorrentes da inflação. Não parece justo se afirmar que o Judiciário e o Ministério Público não estão compreendo as dificuldades do momento, até, agora, se recorrendo à crise internacional etc.
OP – Fala-se até que o atendimento ao Judiciário e ao Ministério Público pode atingir programas sociais que perderiam recursos. Não á verdade?
Gurgel – Esse é um ponto muito importante. Falou-se que conceder o reajuste faria com que recursos da saúde e da educação precisassem ser reduzidos, suprimidos. O primeiro ponto é que, no que diz respeito ao Ministério Público, e tenho certeza que quanto ao sistema Judiciário, temos uma das nossas missões constitucionais a defesa dos direitos fundamentais, onde estão em posições prioritárias a educação e a saúde. Jamais o Ministério Público pretenderia obter qualquer tipo de reajuste para os seus membros às custas da redução dos recursos para saúde ou para educação. O argumento, com todo respeito, parece iludivelmente falso. Nos dois últimos anos do governo Lula uma série de categorias ligadas ao poder Executivo tiveram reajustes extremamente substanciais e, ao que consta, não foi retirado um centavo, seja da saúde, seja da educação. A verdade e que nós temos, sim, tido um crescimento da arrecadação, a receita da União, a despeito da crise, há registrado aumento. Parece justo, assim, que haja essa recomposição sem que ela jamais signifique qualquer redução dos valores alocados para saúde ou educação. Outro ponto importante: essa recomposição de perdas faria Judiciário e o Ministério Público manterem sua estrutura na estrutura do Estado brasileiro.
OP – No Judiciário, envolvendo o Ministério Público, a realidade salarial é melhor quando comparada, por exemplo, ao Executivo. Não é verdade?
Gurgel – Não há dúvida que em relação às carreiras públicas o Judiciário e o Ministério Público estão, digamos, pelo menos próximos àqueles maiores valores pagos. Agora, os reajustes do final do governo Lula aos quais me referi fizeram com que, hoje, tenhamos diversas categorias do Executivo com remunerações extremamente semelhantes, em alguns casos até superando, inclusive, às do Ministério Público. Ou seja, se antes se falava que Ministério Público e Magistratura tinham uma posição absolutamente privilegiada, digamos, no serviço público, hoje o que nós assistimos é um achatamento. Um outro aspecto dessa questão é que quando se falou na tal crise entre Ministério Público, Judiciário, Executivo etc, na verdade, havia ali uma questão constitucional. O poder Judiciário e o Ministério Público detêm autonomia financeira e, por isso, a eles é assegurado oferecer, fazer sua proposta orçamentária e, no nosso entendimento, o Executivo não pode alterar essa proposta. Foi o que fez o Executivo nesse caso, ele, simplesmente, reduziu a zero os recursos que eram destinados a reajustes salariais na proposta orçamentária que encaminhou ao Congresso. O que poderia acontecer, e faz parte do processo, é que a redução, ou supressão, até, fosse feita no Congresso Nacional. Ai seria perfeitamente legítimo.
OP – O senhor é o terceiro Procurador Geral da República na fase do PT no governo, depois de Cláudio Fonteles e de Antonio Fernando. Na época do PSDB o cargo esteve ocupado por Geraldo Brindeiro, a quem se acusa até hoje de vinculo com o governo, ao ponto de, brincando, a oposição chama-lo de Engavetador Geral da República. O que mudou de uma fase para a outra?
Gurgel – O que houve, na verdade, foi uma evolução do Ministério Público, que é uma instituição antiga, de muitos anos, mas que renasceu, digamos assim, com a Constituição de 1988. Como a gente sabe, a Constituição de 1988 dá um tratamento ao Ministério Público que é raro em qualquer lugar do mundo. O Ministério Público brasileiro é dotado de prerrogativas, de garantias e de atribuições difíceis de encontrar em qualquer das melhores constituições democráticas do mundo. E é claro que esse novo quadro do passado, nós, no Ministério Público federal, éramos fundamentalmente advogados da União. Não existia na época a Advocacia da União. O novo quadro que surgiu com a Constituição de 1988 vai sendo implementado e concretizado ao longo dos anos. A diferença maior que existe, a meu ver, é que no governo Fernando Henrique Cardoso jamais se conseguiu sensibilizar o presidente para a necessidade de se acolher, respeitar a votação da classe. No início do governo do PSDB não houve votação, mas lá no final aconteceu a elaboração das listas, em uma ou duas oportunidades, e o presidente Fernando Henrique ignorou solenemente. Com o presidente Lula, então, se inaugura o respeito, o acolhimento a essas listas e acho que isso dá ao Procurador Geral escolhido uma legitimidade maior. De um lado, mas do outro há um compromisso maior com o cumprimento da missão constitucional. E outra coisa de achar que tudo bem, foi o presidente da República que escolheu, agora a presidente da República, mas o escolhido foi o mais votado. Então, ao meu ver, essa ligação com o Poder Executivo fica ainda mais tênue.
OP – Há uma aparente realidade nova no País, quanto à segurança das autoridades, com o recente assassinato de uma juíza no Rio de Janeiro, coisa rara de acontecer até então em cidades grandes e que pode ser símbolo de uma mudança no quadro. Aqui no Ceará, recentemente, vários promotores públicos se disseram ameaçados, obrigando o Ministério Público estadual a instituir um núcleo especial de inteligência para protegê-los. Enfim, o que está acontecendo no País em relação à questão?
Gurgel – Acho que o caso do Rio, sobretudo, desperta o Judiciário e o Ministério Público para gravidade da situação. Muitas vezes subestimamos os riscos que corremos, por achar, aquela velha coisa, de que o Brasil é um país tranqüilo, que não há esse tipo de problema. Na verdade, porém, temos hoje uma criminalidade cada vez mais organizada e os riscos são cada vez maiores. O caso do Rio também é paradigmático na medida em que nós até achávamos que fosse possível acontecer esse tipo de problema, de morte etc, mas fora dos grandes centros. Na própria Procuradoria da República, no próprio Ministério Público Federal sempre voltamos muito a atenção para os colegas que estão, por exemplo, no Norte do País, naqueles locais isolados, essa coisa toda, achando que ninguém ousaria agir num grande centro. O fato, lá em Niterói, mostrou que essa percepção é equivocada e, hoje, tanto o Conselho Nacional do Ministério Público quanto o Conselho Nacional de Justiça já se empenham em desenvolver um projeto profissional mesmo de segurança institucional. No âmbito do Ministério Público Federal já desde o início do meu primeiro mandato que nós reformulamos a unidade que temos de segurança institucional, reforçamos com profissionais especializados oriundos das Forças Armadas e, enfim, estamos profissionalizando a área para que os riscos possam ser detectados. É, basicamente, um trabalho de inteligência.
OP – Por falar nos Conselhos Nacionais, de Justiça e do Ministério Público, qual é a opinião do senhor sobre o funcionamento deles.
Gurgel – O que posso dizer é que fui presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República e, no cargo, sempre defendi a necessidade do controle externo, porque não podemos negar os riscos do corporativismo. Muitas vezes, na verdade, a instituição é incapaz de responsabilizar adequadamente seus próprios membros por excessos, desvios de conduta, essa coisa toda. Sempre tive uma opinião favorável ao controle externo. O saldo, na minha visão, é extremamente positivo com a criação dos Conselhos Nacionais, há cerca de cinco anos. O Conselho Nacional de Justiça ele conseguiu intensificar sua atuação antes do Conselho do Ministério Público, é verdade, até por ter uma estrutura e um orçamento maior. No caso do orçamento, por exemplo, dez vezes maior, um descompasso que não se justificava apesar de o Judiciário, claro, ser maior. No caso do Judiciário, que sempre foi extremamente fechado, era talvez o mais fechado dos poderes, o CNJ teve o grande mérito de romper com tudo isso, apesar de ainda haver dificuldades aqui e acolá, mas, na parte administrativa, o poder foi trazido para as luzes. Da mesma forma está acontecendo com o Ministério Público, que era um pouco menos fechado do que o Judiciário, não deixava de reproduzir seus problemas mais eloqüentes. É muito comum, até, que quando numa inspeção do CNJ sejam detectadas irregularidades administrativas uma visita posterior do Conselho Nacional do Ministério Público os mesmos problemas sejam encontrados. A verdade é que Judiciário e Ministério Público acabavam sendo parceiros, no mau sentido, no sentido de criar, adotar, condutas inaceitáveis do ponto de vista administrativo".
F: O povo
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