Histórias contadas na mesa de um bar
CRÔNICA
Há quem diga que uma das coisas com que podemos contar em uma criança é a verdade. Mas, como fui uma criança muito “diferenciada” — onde também se pode ser “arteira” — não sou um dos que acreditam piamente na palavra dos pequenos. Prefiro destacar outras duas características que considero mais notáveis e que também servem como objeto de admiração: a inocência e a facilidade em ser feliz com pouco.
Há quem diga que uma das coisas com que podemos contar em uma criança é a verdade. Mas, como fui uma criança muito “diferenciada” — onde também se pode ser “arteira” — não sou um dos que acreditam piamente na palavra dos pequenos. Prefiro destacar outras duas características que considero mais notáveis e que também servem como objeto de admiração: a inocência e a facilidade em ser feliz com pouco.
Já passava das dez da noite, ambos os irmãos dividindo um beliche. Como sempre o mais velho ocupara a parte de cima, sinal claro de superioridade, e o mais novo largado na cama de baixo. Para quem nunca teve esse desprazer, ficar na parte inferior de um beliche, na meritocracia informal de um quarto que irmãos dividem, é o equivalente a dormir no porão de um navio, tudo de ruim acontece com quem está lá.
Com o maior ar de sabedoria do mundo, coisa que só os poucos anos de vida são capazes de provir, Felipe encheu o peito e, cheio de confiança, disse uma frase em alto e bom som que acabou com o silêncio que havia no quarto:
— Grandes poderes, grandes responsabilidades!
Imediatamente, Marcelo, que era cerca de dois anos mais novo do que Felipe,
imaginou que era algum tipo de ataque de sonambulismo ou uma nova forma de ser
perturbado pelo mais velho e não deu bola, fez de conta que estava dormindo.
Diante da falta de resposta Felipe resolveu insistir. Debruçou-se na cama, colocou a cabeça para baixo de forma a enxergar o irmão e voltou a atormentá-lo com a misteriosa frase.
Vendo que não iria ter paz, Marcelo viu-se obrigado a interagir. Sempre
achou o irmão mais velho inconveniente, carente de atenção em excesso e
extremamente dependente dos pais.
Ao contrário do irmão, Marcelo era um garoto precoce em tudo, chegou até
mesmo a abandonar as fraldas antes do mais velho. Até hoje, com certa razão, se
gaba disso. Não fosse pela vergonha que o caçula deu ao Felipe, de certo ele
ainda estaria a andar de fraldas!
Em alguns momentos da sua vida chegou a achar que algum tipo de adoção tinha acontecido. Em sua fértil imaginação, um ou outro tinha que ter vindo de outro lugar. Não era possível que duas crianças com os mesmos pais e criação pudessem ser tão diferentes quanto a maturidade e aos hábitos.
— Do que é que você está falando, Felipe? Que negócio é esse de
responsabilidades e poderes?
— Ué? Ficou doido? Amanhã é o seu primeiro dia de aula na primeira série e
eu, como seu irmão mais velho, tenho a responsabilidade de preparar você para o
que virá!
Marcelo quis rir, mas se conteve. Era graças ao medo do escuro que Felipe
tinha que a luz dos abajures tinham que permanecer acesas e agora ele vinha com
essa de prepará-lo. Parecia piada!
Como queria saber até onde Felipe iria com aquela conversa, deu um longo
suspiro e instigou-o um pouco mais.
— Como é que é? Você vai me preparar?
— Lógico! É para isso que irmãos mais velhos servem, para ajudar e proteger
os mais novos… É o meu dever familiar.
— Tá bom! Mas primeiro me explica de onde tirou essa história…
— Ah, Marcelo, não acredito! Vai me dizer que não sabe de quem é essa frase?
— Não faço ideia! Do papai ou da mamãe é que não é…
— É do Homem-Aranha! Todo mundo sabe disso! — respondeu Felipe quase
gritando e antes que o irmão pudesse responder, continuou em tom de deboche —
Não acredito que você não sabe quem é o Homem-Aranha!
Naquele instante um sorriso se abriu em Marcelo. Não é que viu alguma graça
ou sentido na bobagem que o irmão tinha dito, mas para ele, acreditar que o
Homem-Aranha existia era uma prova irrefutável de que não podia haver vínculo
entre os dois e só poderia significar uma coisa: o irmão era adotivo! Isso
explicaria tudo.
— Felipe, vou lhe dizer uma coisa e espero que preste muita atenção. —
fez uma pequena pausa para dar um ar dramático ao momento e continuou — O
Homem-Aranha não existe! Isso é desenho em quadrinhos!
— Existe sim! Você é que não conhece!
E nisso ficaram por mais de meia hora, um tentando convencer o outro de que
sua crença não tinha fundamento. Isso duraria mais tempo ainda se a conversa
não fosse interrompida por outro assunto: a hora de dormir.
— Felipe, já está tarde… Vamos dormir e amanhã a gente termina esse assunto.
— Ah não! Agora que eu já estava quase provando que o Homem-Aranha existe?
— Tá bom! Eu aceito, ele existe! Pronto? Satisfeito? Agora podemos dormir?
— Por que é que você está com tanta pressa?
— Não é que eu esteja com pressa, até gosto de ficar discutindo com você,
mas no Natal passado pedi um robô que faz experimentos científicos e ganhei uma
bola.
— Mas o que é que uma coisa tem a ver com outra, Marcelo?
— Agora lá vem você com esse papo… Qualquer criança sabe que o Papai Noel só
deixa o presente que queremos se nos comportamos e já passou da hora de irmos
dormir. Só me falta ganhar outra bola dele por ter ido dormir tarde!
No dia seguinte a conversa não continuou. Acharam melhor por uma pedra no
assunto em nome do relacionamento que tinham. Alguns verões depois descobriram
que ambos estavam errados, mas até lá foram felizes, cada um com o seu mundo.
F: Marcelo Vitorino
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