VAI
LEVANDO
CRÔNICA
Recém-contratada como empregada doméstica no apartamento da família Souza,
Marinalva era daquele tipo de pessoa que adorava bisbilhotar a vida alheia.
Como de costume, tirava boa parte do dia para perambular pelas áreas sociais do
prédio em que trabalhava. Seu objetivo era claro: saber de tudo o que acontecia.
Logo na primeira semana, fez amizade com a maioria das outras empregadas que lá trabalhavam. Em cada conversa boba, sobre qualquer assunto trivial, dava um jeito de saber como as coisas funcionavam nas casas dos vizinhos.
Em dado momento
chegou a gerar um certo mal estar no seu grupo. De tanto perguntar, algumas
meninas entenderam que deveriam se afastar dela.
No final do
primeiro mês, a maioria virava a cara quando lhe via ou então inventava alguma
desculpa para se afastar. A única que ainda conversava com Marinalva era uma
conterrânea sua, beirando os cinquenta anos, chamada Ozenira.
Contrariando a
maioria dos prognósticos populares, Ozenira era uma pessoa de uma serenidade
sem fim, não tinha nada de “arretada”. Pelo jeito tranquilo com que lidava com
as situações, podemos dizer que ela estava mais para mineira do que para
pernambucana.
Certo dia, estava
ela sentada em frente ao playground onde brincavam as crianças do prédio, vendo
o tempo passar, quando Marinalva chega como se tivesse visto um fantasma:
— Oze, você não
vai acreditar no que eu tenho para te dizer!
— Se não vou
acreditar, por que quer me contar? Deixe pra lá!
— Mas eu preciso!
Não quero ficar com esse buchicho sozinha! Preciso desabafar e vai ser com tú
mesmo.
— Pois bem… —
suspirou Ozenira — Se vai te fazer bem, conte!
— Acho que minha
patroa está tendo um caso! Estou besta com isso. Seu André é um homem tão
íntegro, gentil, educado. Como é que a dona Débora pode fazer uma coisa dessas
com ele?
— Marinalva, em
primeiro lugar, isso lá é da sua conta?
Marinalva parou
por um instante, pensou e respondeu demonstrando bastante indignação com a pergunta.
— Lógico que é! Eu
sou praticamente da família!
— Família onde,
menina? Tu acabaste de chegar, não faz nem dois meses… Até o momento, você é
pior do que namorado de filha que ainda é virgem. — disse Oze, aos risos.
— Não é o tempo
que determina a intimidade, fique sabendo! Eu e a dona Débora somos assim —
disse enquanto mostrava os dedos indicadores, das duas mãos, juntos.
— Já que são
unidas desse jeito, posso crer que foi ela que te contou do caso que está
tendo. Foi?
— Claro que não,
Oze! Coisas assim, não se comungam com ninguém, nem com padre, muito menos com
ente querido. Ora essa!
Mais uma vez
Ozenira foi aos risos. Ouvir Marinalva se intitular como “ente querido” foi
muito engraçado, principalmente pelo tom em que isso foi dito. A colega não estava
brincando, ela realmente acreditava nesse mundo paralelo que havia criado.
— Você fica aí
rindo porque não é na sua casa que isso está acontecendo. Queria só ver se
fosse contigo, o que tu farias!
— Marinalva, mais
uma vez te digo, eu cuido da minha vida e somente dela. É por isso que trabalho
aqui há mais de dez anos, sem nunca ter arrumado encrenca com ninguém. Você, ao
contrário disso, já arrumou inimizade com todo mundo.
— Se está falando
das outras meninas, só pararam de falar comigo porque são invejosas. Um bando
de mal amadas, isso sim!
Vendo que aquela
conversa não chegaria a lugar algum, Ozenira aconselhou Marinalva a não se
meter na vida dos patrões e que ela não deveria ficar investigando os outros.
— Queria que eu
fizesse o quê? Não escutasse nada? Eu estava lá, limpando o quarto, quando ouvi
a dona Débora falando de se encontrar com outro homem. Aí não tive como
não prestar atenção.
— Ainda não
entendi o que você tem a ver com isso… — respondeu Ozenira.
— É um absurdo!
Onde é que já se viu, uma mulher casada, dando trela para vagabundo? Chegamos a
que ponto? O mundo está de cabeça para baixo! Valha-me Deus!
— Marinalva…
Ozenira, com a
sabedoria que os anos e experiências lhe trouxeram, ia falar que isso não era
da conta dela, que dentro da vida de um casal ninguém sabe o que acontece, nem
mesmo quem compartilha a mesma cama, e que a colega não deveria fazer
julgamentos, mas foi interrompida.
— E tem mais, fui
falar com o pastor da igreja aonde vou toda semana. Sabe o que ele me disse?
Que esse tipo de coisa é obra do cão. Como se não bastasse o mundo cheio de
perversidade, com homem atrás de homem e mulher atrás de mulher, ainda tinha
que lidar com as mulheres que traem seus maridos e levam doenças para casa. É muito
incoerência! É o fim dos tempos, Oze!
— Marinalva, acho
que é a hora de te falar algumas coisas. Pelo que me contou, até o ano
passado você batia tambor em um terreiro, agora virou evangélica, mesmo assim
carrega uma imagem de Nossa Senhora da Aparecida na carteira.
— Mas…
Marinalva tentou
interromper, porém Oze continuou a falar, erguendo a mão direita aberta em
sinal para a colega se manter calada.
— Não terminei! Há
semanas te escuto, agora me escute você! Já que não respeitou pai e mãe quando
veio para São Paulo contra a vontade deles, pelo menos me respeite por ser mais
velha.
Diante da
exposição feita por Ozenira, Marinalva se calou esperando pelo que ainda
estaria por vir.
— Se quando você
pegou os cosméticos da sua patroa sem a permissão dela, você não se importou
com as leis de Deus e quando perdeu sua virgindade antes do casamento, também
não se lembrou da fé que agora diz ter, por que acha que deveria ter o direito
de julgar alguém?
— Eu não estou
julgando, estou só comentando! — defendeu-se Marinalva.
— Não mesmo! Está
julgando a vida dos outros e espalhando aquilo que não lhe compete e que
deveria ficar em sigilo.
Sei que você não quer, mas mesmo assim te darei um conselho:
antes de sair mundão afora se intrometendo onde não é chamada e botando defeito
naquilo que não lhe é de direito, cuide da tua vida, da tua família e dos teus
amigos, cuide do teu quintal!
Depois desse dia
as duas nunca mais se falaram. A coerência, melhor dizendo, a falta dela,
separou as colegas. Ao contrário de Marinalva, Ozenira sempre soube que
problemas todo mundo tem, e que a felicidade só é plena quando é particular.
F: Marcelo Vitorino
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