NAQUELA MESA - CÔNICA
— Caio, faz um favor para mim, envia um e-mail urgente para o almoxarife e pede uma caixa de ringtones. Recém-contratado na empresa, como estagiário do departamento de compras de uma grande multinacional, mesmo sem saber do que se tratava, Caio sentou em frente do seu computador para tentar realizar a tarefa. Ligou o equipamento e tentou usar o mouse. Em vão. O periférico insistia em não funcionar. Nesse meio tempo seu colega de sala já mostrava certa impaciência.
— Como é que é, ô do estágio? Vai demorar muito?
Daqui a pouco eu mesmo faço!
Não era nem nove horas da manhã e o garoto já
estava transpirando de tensão. Moveu o mouse para todos os lados, desligou e
ligou novamente os cabos e finalmente teve a ideia de virar o mouse para cima.
A primeira de muitas brincadeiras estava feita,
bloqueando o sensor ótico do mouse estava uma tirinha com a foto do Sérgio
Malandro e um “salcifufú” escrito.
Quando olhou para trás notou que o departamento
inteiro, cerca de sessenta pessoas, ria desenfreadamente dos seus momentos de
infortúnio.
Em pouco mais de três meses, Caio sofreu com toda
a diversidade de sacanagens que seus colegas preparavam: bagunçavam as coisas
da mesa dele, sujavam seu monitor e mandavam-no buscar coisas que não existiam
como, por exemplo, um envelope redondo para colocar uma circular.
Certa vez o rapaz quase perdeu o emprego por
causa de uma peça que lhe pregaram. Ele havia ido ao banheiro e esqueceu-se de
desligar seu computador. Os poucos minutos que ficou fora foram suficientes
para que os colegas enviassem um e-mail com conteúdo comprometedor, em seu
nome, para o supervisor da área. O texto fazia referência à esposa do chefe. O
resultado da brincadeira foi ter que passar duas horas explicando o ocorrido.
Em quase toda empresa o estagiário é o último da
fila do respeito. Se der, consegue algum, mas não é a prioridade. Caio conheceu
muito bem essa lógica maquiavélica que impera no meio corporativo. Não via a
hora em que outro estagiário fosse contratado para poder passar o problema
adiante.
Mal sabia que a sorte estava prestes a lhe sorrir.
Em dada sexta-feira, já na hora de ir embora, Robson, seu colega de baia atende
uma ligação. “Deus” queria falar com Caio e pedia sua presença imediatamente.
“Deus” era o apelido que os funcionários davam ao presidente, visto que nunca
ninguém o via, mas eram sensíveis as suas decisões. O diretor executivo era
chamado de Jesus.
— Não tem graça, Robson! Chega de sacanagem, essa
semana vocês passaram do limite!
— Não é zoeira, juro! Em dois anos nunca recebi
uma ligação da dona Mirtes, secretária de Deus, a coisa deve ser séria.
— Só falta ser por causa daquele e-mail que vocês
enviaram para o Ademir… Se for, quero avisar, vocês estão fodidos comigo.
— Falou o Chuck Norris! — debochou Robson. —
Agora pare de bobagens e vá ver o que o homem quer.
Caio foi até o banheiro, lavou o rosto, verificou
o hálito e até as sobrancelhas penteou. Queria estar impecável, mesmo que
estivesse sendo chamado para ser demitido. Chegando ao vigésimo andar, lugar
que só os gerentes conheciam, ficou encantado com a decoração. Tudo muito caro,
mas com muito bom gosto. Diferente das coisas bregas que via nas salas dos
gerentes. Aguardou por cerca de uma hora.
Quando estava quase cochilando a dona Mirtes
disse que poderia entrar. Deus, aliás, o presidente foi muito direto:
— Rapaz, sente-se. — disse apontando para a
cadeira que estava em sua frente — Te chamei aqui porque estou problema.
— Seu Osório, peço que o senhor me desculpe,
foram os meus colegas de sala. Nunca tive nada a ver com a mulher do Ademir. —
disse Caio, tentando se justificar enquanto pensava em como seria difícil
arrumar outro emprego naquela época do ano.
— Garoto, não sei do que está falando. Mas, não
me interessa. Te chamei aqui para falar de um problema meu, não sobre um
problema seu. O motorista da minha filha sofreu um pequeno acidente e ficará
oito semanas fora. Fui informado pelo RH que você acabou de ser contratado e
que em seu currículo há uma informação sobre você ter carteira de habilitação.
— Tenho sim, senhor.
— Muito bem. O que vou lhe pedir é muito pessoal,
está fora das suas atribuições aqui na empresa, portanto sinta-se livre para
declinar o pedido. Peço que não se sinta pressionado. Não preciso que você fique
dirigindo todos os dias, apenas quando o meu motorista não conseguir levar
minha filha. O que deve acontecer uma ou outra vez. O que me diz?
Obviamente seria impossível não se sentir
pressionado. Caio era novo, mas não era besta. Aceitou a proposta. Foi
advertido para que o pedido ficasse entre eles e o RH, Deus não queria dar
motivo para falatórios. Se ele precisasse sair nas horas de trabalho, não
precisaria justificar ao seu supervisor, ele seria avisado que suas faltas
seriam abonadas.
Quando voltou para sua baia foi recebido pelos
colegas com vários questionamentos, porém, conforme o combinado disse que havia
ocorrido um engano. Estavam atrás de outra pessoa.
Na semana seguinte teve sua primeira missão.
Parou o serviço as quinze horas e foi, discretamente, pegar Mariana na
faculdade de medicina. Mariana, a filha mais nova do presidente, era de uma
beleza e carisma impressionante. Não havia homem no mundo que não se encantasse
com ela. Caio, por medo de qualquer tipo de problema, sequer a olhava nos olhos.
Ao chegar para trabalhar no dia seguinte seus
colegas foram tomar satisfações sobre seu sumiço.
— Ô, estagiário… Que folga, hein… Saindo do
“trampo” as três da tarde e, sem dar satisfação. Tá achando que virou gente, é?
— perguntou um dos presentes, o mais alto que conseguiu, com a intenção clara
de constranger o rapaz.
O supervisor da área ouviu a interpelação e
chamou todos os encarregados para uma conversa.
— Pessoal, não sei o que está acontecendo, mas
recebi uma “CI” — um comunicado interno — diretamente da dona Mirtes, dizendo
que era para abonar qualquer falta ou atraso do Caio.
— E você não perguntou por quê?
— De jeito nenhum! Se tem uma coisa que eu
aprendi é que quem abre a boca para reclamar não é promovido, Deus gosta de
quem fica quieto e não enche o saco. Nessas horas, sou soldado. Pediu, eu faço.
Por via das dúvidas, vamos maneirar nas brincadeiras com ele. Acendeu o sinal
amarelo…
A curiosidade da turma já estava no limite quando
Alicinha, a patricinha da turma, chegou ao departamento boquiaberta.
— Gente, vocês não sabem quem eu vi com a filha
mais nova de Deus! O Caio! Eu vi ele dirigindo o carro dela, entrando em
daqueles restaurantes super chiques lá na Vila Olímpia.
Daquele dia em diante a vida de Caio mudou. Para
o pessoal do trabalho estava mais do que claro porque ele havia herdado o
cartão de isenção junto ao presidente. Ele estava namorando a Mariana, óbvio.
Sem entender nada do que estava acontecendo, Caio
estranhou o comportamento dos colegas, não somente as aporrinhações cessaram
como diversos mimos passaram a lhe ser dados. Alguém voltava da copa, trazia
água gelada para o rapaz. Seus almoços passaram a ser pagos por seus colegas,
que se revezavam na função de lhe puxar o saco. Até carona para casa ele passou
a ter. Ele passou a ser o máximo, suas piadas que antes eram sem graça agora
faziam as pessoas chorar de rir.
O motorista se recuperou em tempo recorde, para o
azar de Caio. Foram seis semanas de boa vida, não precisando mais bater o ponto
e nem dar satisfação do seu trabalho para ninguém. O lado bom é que o
“prestígio” que obteve pelas circunstâncias continuou. Pelo menos por algum
tempo.
Cerca de três meses depois, a Alicinha trouxe uma
daquelas revistas de fofocas para o departamento. Mariana estava oficializando
a sua relação com um ator muito conhecido. Caio, o filho mais querido do
presidente, pelo menos na opinião de seus colegas, voltou a ser o Caio, o
estagiário mais do que desnecessário.
F: Marcelo Vitorino
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