BRASÍLIA
- Documentos e depoimentos obtidos pelo GLOBO apontam para a existência
de esquemas de desvio de recursos da Fundação Nacional de Saúde
(Funasa) e do Ministério da Saúde em pelo menos nove dos 34 Distritos
Sanitários Especiais Indígenas (Dseis) distribuídos de Norte a Sul do
Brasil, além de ONGs que receberam dinheiro para ações de saúde
indígena. As fraudes estão concentradas no serviço de abastecimento de
combustível de barcos e veículos, compra de alimentos e pagamento por
horas de voo para o deslocamento de pacientes, médicos e insumos. Apenas
o contrato nacional de combustível, firmado entre a Funasa e a Ticket
Serviços S/A, pagou, nos últimos 4 anos, R$ 142,5 milhões nos 26 estados
e no Distrito Federal.
As fraudes, de acordo com farta documentação elaborada por fiscais e gestores da Saúde ao longo de 2011, teriam beneficiado servidores públicos em postos de chefia, empresários e lideranças indígenas, que recebiam sua "cota de combustível" como "cala boca" preventivo ao péssimo atendimento de saúde, relatam procuradores da República e agentes federais com atuação na Amazônia Legal.
Enquanto o dinheiro escorre no ralo da corrupção, o Dsei Javarí, na segunda maior área indígena no país, com 4.915 moradores, contabilizou, entre 2010 e 2011, 255 nascidos vivos e 33 mortes por desnutrição aguda, diarreia e pneumonia de crianças entre 1 e 5 anos - 1,2 mortes para cada dez nascimentos.
As irregularidades prosperaram no uso do Ticket Car, cartão de pagamento de combustível para veículos terrestres e fluviais. Em Manaus, por exemplo, os cartões dos servidores públicos caíram nas mãos de intermediários, que administram postos que atendem à Funasa. Em 05 de abril de 2011, por meio do memorando 017/2011, um fiscal de contrato relatou a existência de veículos parados, no Dsei de Manaus, mas que continuavam "rodando" e sendo abastecidos de maneira fraudulenta.
Ofícios que autorizam pagamentos são recolhidos
Foi o estopim para a descoberta de 53 cartões de abastecimento, que ficavam sob controle do Posto Sideral, em Manaus. O estabelecimento pagava créditos de combustível para contas bancárias indicadas pelos chefes dos distritos indígenas, conforme admitiu ao GLOBO o encarregado administrativo do posto, Landy Rodrigues Lima. Dinheiro que, em tese, servia para subsidiar o abastecimento de veículos no interior do estado.
--- Eles deixavam (os cartões) aqui e, no fim de semana, buscavam. Ninguém entendia o porquê. Eu só fazia passar o que eles pediam para passar. A gente fazia a intermediação --- diz Lima, que não sabe quanto o posto ganhava na intermediação.
O MPF descobriu que os chefes do Dsei emitiam ofícios para liberar os créditos de combustível. Porém, no final do mês, funcionários do distrito recolhiam nos postos os ofícios de forma a sumir com as provas, informa um procurador da República. Técnicos do Ministério da Saúde, ouvidos pelo GLOBO, detectaram procedimento semelhantes nos Dseis Tefé e Parintins. Um servidor, que pediu anonimato, conta que o dinheiro também beneficia lideranças indígenas. É a cota de combustível.
Os desvios agora revelados reforçam um histórico de fraudes no atendimento de saúde indígena. Apenas quatro investigações federais, concluídas nos últimos dois anos no Amapá, Rondônia e Roraima, apontam prejuízo de R$ 13,6 milhões. São desvios na compra de alimentos, pagamentos de horas de voo, e serviços sem execução comprovada.
Foram detectados indícios de desvios em combustíveis, uso fraudulento de cartão de abastecimento e pagamentos irregulares por serviços nos Dseis Médio Rio Solimões e Afluentes; Araguaia; Minas Gerais/Espírito Santo; Cuiabá; Xavante/MT; e Médio Rio Purus. A documentação seguiu para Brasília. O coordenador nacional dos fóruns de conselhos distritais de saúde indígena (Condisis), Jorge Marubo, confirma as irregularidades e diz que há grande resistência - inclusive entre lideranças indígenas - para estancar a sangria.
- Para romper esse sistema de desvio de recursos é muito difícil. Alguns indígenas se envolvem nisso, querem manter o sistema da Funasa. Há muita dificuldade para a organizar a mudança - diz Marubo, que vive no Vale da Javarí, região que, segundo ele, tem o pior atendimento de saúde indígena do Brasil.
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