terça-feira, 9 de agosto de 2011

O CORDEL ESTÁ DE LUTO E SEM RIMA: MORRE O POETA ZÉ SALDANHA

Em 2008 por ocasião do aniversário do Jornal Cajarana o poeta Zé Saldanha me surpreendeu no Recanto do Poeta escrevendo de improviso em um caderno a poesia "Santana do Matos - A Princesinha do Sertão", foi o maior incentivo que recebi nesses três anos.  

ZÉ SALDANHA
A simplicidade em pessoa, o talento em poesia, a vida em harmonia, quase um século interagindo com sua lucidez.  Lucidez e conteúdo autêntico que impressionava logo no primeiro contato que fizesse e sentisse pelo faro sensível de valores afins.  Era assim, Zé Saldanha. Ouvia, olho no olho e logo nas suas primeiras palavras chamava atenção ao interlocutor.  Conteúdo, inspiração e simplicidade explodiam,  sorriam, alegravam a conversa. Considero o maior dos poetas santanenses em todos os tempos, uma perda cultural, uma memória incomparável que parecia ser reprisada por imagens nítidas de alta resolução.  Nas visitas que fiz ao Recanto do Poeta ficava impressionado pelos detalhes e referências que fazia do meu pai dos anos 30.  Autêntica criatividade de expressão e simplicidade fazendo dos simples fatos, conteúdos que motivavam uma atenção maior.  Quando soube do Jornal Cajarana, fundado por mim em Santana do Matos fez um convite formal e juntou alguns amigos poetas em 2008 e fez a maior das homenagens que já tive na vida. Pegou um caderno, uma caneta e fez na hora uma poesia alusiva a Santana do Matos, citando o Jornal Cajarana ...

Santana do Matos - A Princesinha do Sertão
Autor:  Zé Saldanha


Hoje, um ano de publicação
Do nosso Jornal Cajarana,
A gazeta de Santana 
Princesinha do sertão!
De pequena dimensão,
De volumosa cultura,
Estudo e literatura,
Conhecimento e certeza!
Foi a mão da natureza
Que lhe cobriu de aventura...

A cidade é conhecida
A terra da filosofia
Estudo e sabedoria,
Pela a Santa é protegida!
Sua história é lida
Pelos paises em gerais
Livros, revistas e jornais
A cidade de Santana 
Sua história é veterana
Linda e bonita demais!

Uma cidade pequena
De vultos evoluídos
Registrados, conhecidos:
Ferreira, Lopes, Macena!
Uma gentileza amena
De perfil brilhante e ledo
Felipe, Fernandes e Macedo
Lolô, Carvalhos e Balbinos,
Raimundo e Adelino,
Avelinos e Azevedo... 

Santana terra dinâmica
De uma alta nobreza,
De barão e baronesa
Os donos de Serra Branca,
É a chave que destranca
Essa história varonil,
Dessa cidade gentil
Terra feliz e amada
Da primeira deputada
Da história do Brasil! 
Natal / RN – março/2008

Assim foi Zé Saldanha para aqueles que o conheceram. Para os que não o conheceram pessoalmente veja sua autodefinição em um cordel: “Sou um dos nordestinos, magro, baixinho e sisudo, mas que tem honra e méritos no Nordeste de Canudos; nas terras de Gonzagão, Antônio Silvino e Lampião, de Padin Ciço e Cascudo”.

“Sou um dos nordestinos,
magro, baixinho e sisudo
mas que tem honra e méritos
no Nordeste de Canudos;
nas terras de Gonzagão,
Antônio Silvino e Lampião,
de Padin Ciço e Cascudo”.
Zé Saldanha

Assim foi Zé Saldanha para aqueles que o conheceram. Assim será Zé Saldanha para os que ainda vão conhecè-lo. Sertanejo autêntico, sentiu na pele as dificuldades de uma região, sua alma e vida se confundem com a tradição dos cordéis que contam e cantam em versos e prosas, a sorte, a vida, os caminhos, a vida do nordestino.
Assim era Zé Saldanha. Assim foram e seremos muitos nordestinos, nem tanto talentosos. O cordelista José Saldanha de Menezes Sobrinho, assim foi Zé Saldanha. Contou e manteve a tradição dos cordéis que falava de amor, sofrimentos, angústias e da pureza do povo nordestino, assim foi Zé Saldanha. Sua voz cuidada e trabalhada ainda declamava com ritmo  e postura de um artista de época dos cordéis. Sua conversa predileta era falar sobre o sertão, sociólogo nato quando se transportava no tempo sempre dizia: "naquele tempo" ...  em seguida um tema qualquer recheado de colocações de um autodidata, tipo assim ... " naquele tempo, quem não era filho de famílias tradicionais, que eram poucas, as opções eram práticas, a escolha era rápida, tudo diretamente proporcional ao físico, ao talento ou vocação.  Certa vez me disse: "os jovens tinham que definir logo cedo o que seria na vida. Vaqueiro, puxador de gado, bom na enxada, desviar para o crime que era o cangaço ou se encantar com a viola, a poesia, preferi os cordéis". E foi com eles que aprendeu a ler e declamar.

O cangaço influenciou o talento
O legado de Zé Saldanha deixa evidências da influência do cangaço na formação cultural do cordelista. As escaramuças em Mossoró retratadas em versos, vislumbra o ídolo com emblemas e escudos reluzentes pela força mágica dos conceitos, valores e injustiças da época. Aos 20 anos, o jovem anti cangaço valoriza por passagens épicas a contenda duvidosa entre o bem e o mal. Veja  alguns trechos:

Pra vingar-me de uma crueldade,
Foi preciso tornar-me cangaceiro,
Atacar o Nordeste brasileiro,
Por sítio, por vila e por cidade.
Mandei chuva de bala de verdade,
Foi quente a boca do balão,
Tornei-me até assombro no sertão.
Fui conhecer Mossoró também de perto,
Mas o povo de lá é muito esperto,
Danado de doido e valentão.

Ataquei Paraíba e Pernambuco,
Alagoas, Sergipe e Bahia,
Dominei e fiz tudo o que queria,
Dei trabalho aos soldados de Nabuco.
O governo de lá perdeu o suco,
Procurei um lugar de mais reforço,
Para atacar Mossoró eu fiz esforço,
A viagem foi errada e foi perdida
Fui feliz escapar com minha vida,
Que o chumbo de lá é muito grosso.

Lampião correu apressado,
Uma mão sobre o rifle outra na faca,
Já perdendo Colchete e Jararaca,
Conduzindo três homens baleado.
E seu grupo havia debandado
Que atacar Mossoró não é brinquedo,
O grupo abriu as pernas sobre o bredo,
Que em Mossoró a bala choveu quente
Da santa igreja de São Vicente,
Uma nuvem de bala causou medo.

Lampião correu dizendo assim:
- Se eu não fosse perito e veterano,
Eu tinha era entrado pelo cano
E Mossoró ia até zombar de mim.
Talvez até por lá me desse fim,
Esse tal de Mossoró não me convém,
O povo lá não tem medo de ninguém,
Tudo é danado de doido e é valente,
Até da santa Igreja São Vicente,
Os Santos atiraram em nós também.

A neta do cordelista, Andressa Saldanha divulgou e ressaltou para a mídia que o poeta está descansando, mas a poesia dele continua viva. O velório de Zé Saldanha acontece a partir do fim da tarde desta terça-feira no centro de velório do Morada da Paz, em Emaús. O poeta será sepultado às 11h desta quarta-feira. Amigos, familiares e admiradores do trabalho de Zé Saldanha levarão suas poesias e prestarão as homenagens.

Nenhum comentário:

Postar um comentário