domingo, 1 de abril de 2012

ENQUANTO ISSO, NA SALA DE CRIAÇÃO

Zeca Baleiro
Cantor e Compositor 
Colunista da Revista Isto É 
Abril - 2012 

"Meu filho, aprenda de uma vez por todas: todo negócio é religioso, seja ele uma farmácia, uma agência de modelos ou uma tevê"


A reunião na sala de criação da tevê estava tensa.
– Estamos perdendo terreno, nossa grade está uma b... – bradou o diretor de programação. Precisamos criar coisas realmente novas – falou, enfatizando cada sílaba de realmente.
Um silêncio nervoso tomou conta da mesa. Até que um corajoso assistente manifestou-se.
– Senhor, sabe o que é? Temos uma grande limitação aqui. Você sabe, a direção desta tevê é religiosa... Não podemos falar de tudo, mostrar tudo...
– Meu filho, aprenda de uma vez por todas: todo negócio é religioso, seja ele uma farmácia, uma agência de modelos ou uma tevê. Todos são religião, e seu credo é um só: o lucro.
– Sim, mas...
– Nem mas nem meio mas. Não estamos aqui para filosofar, mas para criar. Pedi a vocês projetos, quero vê-los.
Um a um, os membros da equipe foram mostrando seus vários projetos: um programa de humor temático com o sugestivo nome “Chupa Que É de Uva!”; um programa de esporte com um velho ícone polêmico do futebol comentando a rodada, mas apresentado por cinco gatas de arrasar quarteirão, cujo nome o rapaz falou com um sorriso amarelo na boca – “Bolas na Mesa”; uma gincana só com drogados batizada de “Bungee Junkie”; um talk show com celebridades apresentado por outra celebridade televisiva, de preferência mulher, chamado “Celebre a Vida”, etc.
Dezessete projetos de programas depois, entre o tédio e o desânimo, o diretor falou:
– Agradeço o empenho de vocês, mas nada do que temos aqui nos serve. Precisamos revolucionar a programação. Nada que vocês me mostraram aqui tem pegada pra isso.
Pausa dramática.
– Vocês são muito jovens, talvez não saibam, mas eu era office boy da Globo quando vocês ainda nem eram nascidos. Convivi com Boni...
– Boninho, senhor? – perguntou um estagiário.
– Não, Boni, o pai, o gênio da televisão brasileira.
Falou incisivo, mirando nos olhos do rapaz:
– Espera, você nunca ouviu falar de Boni? Tsc, tsc, não me espanta que seus projetos sejam esta m...
Um clima mais tenso ainda se instalou na sala de reuniões.
– Olha, melhor parar por aqui. Voltem pra casa, amanhã conversamos de novo. Se tiverem tempo, leiam algo, consultem na internet, saibam o que já foi feito antes de vocês existirem. O mundo é mais velho do que vocês, acreditem.
Todos se levantaram e um zunzunzum sem fim teve início. O diretor, abatido depois de reunião tão desgastante, saiu sem falar com ninguém.

Jota Jota (sim, esse era o seu nome “artístico”) era um homem empreendedor. Não era um supercriativo, mas tinha faro e um certo bom-senso, além do talento de criar programas de sucesso. Sabia que daquelas pedras não espremeria leite algum. Havia cinco anos começara a beber e tomar antidepressivos, vendo o declínio de sua carreira se aproximando. Aquele era um momento crucial em sua vida. Ou ele tirava um (ótimo) coelho da cartola ou estaria arruinado. Não dormiu naquela noite. Ficou zanzando pra lá e pra cá, anotando ideias no computador, ideias que abortava logo com seu implacável senso crítico.

Ao amanhecer, chegou a fúnebre notícia aos estúdios da tevê: Jota Jota se matara, numa overdose de uísque e remédios. Deixou um bilhete curto e grosso para a sua equipe: “Criem, criem!”

Uma semana depois de sua morte, a tevê para a qual trabalhava alcançava picos de audiência com um novo programa, a grande sensação da tevê brasileira naquele ano: um reality show com profissionais em fim de carreira e deprimidos. Vencia aquele que primeiro se matasse. Prêmio: um milhão de reais.

Nota do Blog:
Textos com conteúdo possibilita a interpretação para cada leitor de maneira diversificada, criativa e com analogias e semelhanças incríveis. Se pensastes noutra reunião de supostos profissionais e em determinada área de atividades ... foi mera coincidência. Prêmio acumulado por alguns shows bi anuais para formação de caixa e decisão sobre legado a ser deixado a forçadas vocações.

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